sábado, 1 de maio de 2010

"PRA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DAS FLORES " E "APESAR DE VOCÊ”: MÚSICA E POLÍTICA NOS ANOS DE CHUMBO

As canções de protesto compostas durante a ditadura militar (1964-85) ocupam um lugar especial na história da música popular brasileira. Esse tipo de registro, explorado como material didático-pedagógico nas aulas de História do Brasil, além de tornar as experiências em sala de aula mais prazerosas e instigantes, enriquece a bagagem cultural dos alunos e convida-os a refletir sobre a importância da luta pela democracia e pelo respeito aos direitos humanos. Essa experiência desenvolvida por mim em sala de aula tem conseguido superar a barreira do "gosto" musical dos alunos, além de lançá-los a um desafio instigante de interpretar o que está subentendido nas entrelinhas das letras dessas canções .

Propomos aqui que esse trabalho seja realizado com base nas músicas " Pra não dizer que não falei das flores" de Geraldo Vandré e “Apesar de você” de Chico Buarque de Hollanda.




RESUMO HISTÓRICO:

Na noite de 31 de março para 1º de abril de 1964, o presidente instituído João Goulart foi
deposto por um golpe de Estado organizado por forças civis e militares. Apoiados pelo empresariado urbano e rural, por diversos setores da classe média, por políticos da UDN e do PSD, pela Escola Superior de Guerra e pelo Alto-Comando das Forças Armadas, os golpistas instalaram uma ditadura militar que perduraria por mais de 20 anos. O regime foi marcado pelo autoritarismo, pela intensa repressão policial e militar, pela limitação dos direitos políticos dos cidadãos, pela contínua violação dos direitos humanos de presos políticos e pela supressão da liberdade de expressão.


A despeito da ação dos órgãos de censura e do recrudescimento da repressão após o AI-5,entre 1968 e meados da década seguinte, artistas oriundos de uma classe-média progressista se projetaram no panorama musical entoando canções de protesto contra a ditadura militar e contribuindo para consolidar a mítica da MPB como espaço de resistência política e cultural. Nesse cenário, um nome se destacou entre os demais: Chico Buarque de Hollanda. Neto do filólogo e lexicógrafo Aurélio Buarque de Hollanda e fi lho do historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Hollanda, Chico Buarque parece ter nascido sob o signo das letras. Esse dom, aliado a uma profunda aversão aos regimes autoritários – outra marca familiar – logo se fizeram presentes em sua obra, de forma que os versos fortes e politicamente comprometidos de suas canções não tardaram a torná-lo um dos artistas mais visados pela censura militar. Essa situação fez com que se exilasse na Itália, de onde regressaria mais de ano depois, em março de 1970, convencido pelo diretor de sua gravadora, André Midani, de uma suposta melhora na situação do país. Mas chegando aqui, percebeu que havia acontecido o inverso. A censura tornara-se menos tolerante e a repressão mais violenta. Foi nessa época, chamada “anos de chumbo”, que ele escreveu algumas de suas mais conhecidas canções de protesto.



Apesar de você
(Chico Buarque, 1970)

Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão
A minha gente hoje anda
Falando de lado
E olhando pro chão, viu
Você que inventou esse estado
E inventou de inventar
Toda a escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar
O perdão

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Eu pergunto a você
Onde vai se esconder
Da enorme euforia
Como vai proibir
Quando o galo insistir
Em cantar
Água nova brotando
E a gente se amando
Sem parar

Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros, juro
Todo esse amor reprimido
Esse grito contido
Este samba no escuro
Você que inventou a tristeza
Ora, tenha a fineza
De desinventar
Você vai pagar e é dobrado
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Inda pago pra ver
O jardim florescer
Qual você não queria
Você vai se amargar
Vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença
E eu vou morrer de rir
Que esse dia há de vir
Antes do que você pensa

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai ter que ver
A manhã renascer
E esbanjar poesia
Como vai se explicar
Vendo o céu clarear
De repente, impunemente
Como vai abafar
Nosso coro a cantar
Na sua frente

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai se dar mal
Etc. e tal



“Apesar de você” foi escrita por Chico Buarque assim que voltou do exílio. Uma leitura menos atenta da música permite que seu tema seja identificado como uma briga de namorados, e talvez tenha sido por esse motivo que a composição passou tão facilmente pela censura. Lançado num compacto simples, o disco vendeu quase cem mil cópias e estourou nas rádios de Rio de Janeiro e São Paulo, sendo cantado em coro por todos aqueles que se mostravam descontentes com a manutenção do regime autoritário.

No auge do sucesso desse animado samba, tornado hino de resistência à ditadura, um jornal insinuou que a música teria sido escrita em homenagem ao presidente Emílio Garrastazu Médici. Só então a letra da música foi compreendida pelos militares, que responderam à afronta proibindo a execução da música, invadindo a gravadora e recolhendo os discos produzidos para destruí-los posteriormente.

Como podemos observar, a despeito da falha do censor responsável pela liberação da música, seus versos contêm referências explicitas ao fi m da liberdade de expressão (Hoje você é quem manda / Falou, tá falado / Não tem discussão), seu descontentamento com a continuidade do regime (Quando chegar o momento / Esse meu sofrimento / Vou cobrar com juros, juro), e a esperança na reabertura política (Apesar de você / Amanhã há de ser / Outro dia). Questionado sobre quem era o “você” referido na música, Chico respondeu: “É uma mulher muito mandona, muito autoritária”. Oportuna analogia...

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